Depois que eu li o último artigo da Lalai em Espiral com o título você é feliz?, eu não resisti em escrever essa primeira carta para ela. Aproveitei e gravei a leitura, assim você também tem a opção de me ouvir lendo essa carta para a Lalai.
Assine a newsletter Espiral - Lalai é expert em tendências e inovações tecnológicas, ela gosta de dizer que não se vê como especialista, mas sim generalista. Eu a vejo como uma mulher fantástica, visionária e expert em futurologia.
Oi Lalai,
Nós nos conhecemos há mais de 15 anos e sou muito sua fã. Acompanhar o seu trabalho e sua evolução profissional é um prazer, ainda que a certa distância. Mas, ler a Espiral é uma forma de estar perto de você e sentir a sua presença.
Quando você publicou seu último post, eu devo ter lido logo no primeiro minuto e bateu uma vontade de não apenas deixar um breve comentário, mas de dividir contigo um pouco dos meus pensamentos e sentimentos.
Se você leitora (leitor) ainda não leu, segue abaixo o acesso:
Ler a sua busca e pesquisa sobre o que seria a felicidade, acho que me remeteu a quem é você. Sempre tive a impressão que você não trabalhava pelo trabalho, de que você não estava numa agência pela agência, pelas pessoas ou pelo projeto.
A minha impressão é que você sempre esteve em busca dessa felicidade. De ser feliz num ambiente de trabalho, de ser feliz com as pessoas ao seu redor e seus projetos. E quando essa felicidade não era mais encontrada, você naturalmente mudava.
Esse seu poder de mobilidade é uma inspiração, pois você não deixa de ser você para estar presente. Você só está presente se for sendo você mesma.
Como você lembrou em seu post, o Budismo explica que tanto nós quanto tudo no Universo possui 10 Estados de Vida ou 10 Mundos (Jikkai - falei um pouco sobre isso aqui: Como você toma suas decisões?), que 6 deles qualquer ser vivo transita naturalmente e em 4 somente com o uso da razão é possível transitar. Permanecer nos estados mais racionais é mais difîcil, pois dependemos do quanto nossa percepção está apurada.
Para termos uma percepção mais apurada, precisamos estar presentes - assim como você também concluiu. Nesse sentido, os Estados de Vida não possuem uma hierarquia, mas sim simplesmente eles existem, inclusive dentro de si mesmos. Existe inferno no Estado de Iluminação (Buda), assim como existe a Iluminação (Buda) no Estado de Inferno.
No Budismo aprendemos que todos os sentimentos estão relacionados com a nossa energia, a energia vital. Aprendemos que é preciso colocar em prática na vida, em todos os momentos, uma percepção livre de estigmas sobre os fatos da vida, capaz de enxergar a pureza das próprias decisões e das decisões dos outros, em um único momento, no qual é possível transformar o passado e semear um novo futuro.
Essa semana ouvi uma entrevista da Denise Fraga para TPM e que parece que ela te ouviu até. Ela disse assim num trecho: Se você não cuidar, vai acabar colocando na sua vida somente o que “é bom fazer”: o que se deve tomar, o que se deve ler, a aula de pilates, o cuidado com a alimentação… E não coloca alegria. Para ouvir: Trip FM
Nesse nosso mundo frenético, cheio de deveres e afazeres, o que mais temos são listas e passos para atingir essa tal felicidade. Mas, o que seria ela?
No Sutra da Guirlanda de Flores (Avataṃsaka Sutra) explica algo de extremos valor: “A mente é como um pintor habilidoso que cria diversos formatos usando os cinco componentes. Portanto, em todos os fenômenos existentes, não há um único que não seja criação da mente. Fora dessa mente, não há fenômenos que existam” (END, v. 2)
Nesse trecho o Buda explica que nossa mente forma conceitos a partir das primeiras percepções (olfato, visão, tato, audição e paladar). Depois disso, nossa mente faz um emaranhado de ideias para formar novas ideias, infinitamente.
Algumas centenas de anos depois, um grupo de filósofos ingleses foram um dos pioneiros no Ocidente a concluir o mesmo que o escrito Guirlanda de Flores. No século 17/18, com os filósofos Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776), o empirismo se consolidava como principal linha filosófica sobre o ser humano. E somente com Jung esse pensamento se aperfeiçou e se consolidou na psicanálise.
Desses 5 grandes filósofos e de muitos que surgiram depois, prevaleceu a ideia que todo ser humano nasce sem ter qualquer conceitos sobre as coisas. Todo ser humano, portanto, passa a conceber as coisas a partir de suas impressões sobre a vida. Como se fosse uma quadro vazio ou tábula rasa.
Em outras palavras, a pessoa atua como um "receptáculo" no qual entram os dados do mundo exterior transmitidos pelos sentidos e pela percepção da realidade. Para Locke ou Berkeley esses dados são chamados de “ideias”, para Hume são chamados de “sensações”. Mas, tanto as "ideias" quanto as "sensações" constituem a base de todo conhecimento.
No início, vamos imprimindo nossas ideias simples (ou primárias) e depois desenvolvemos ideias mais complexas (ou secundárias). Conceitos como frio, quente, vestir, a sensação com os tecidos, os olhares, o ritmo da casa, felicidade, alegria, são exemplos de ideias ou sensações simples. As complexas seriam as combinações de ideias simples ou até mesmo a evolução de conceitos como o amor.
Como a ideia de amor entre os bebês e as mães, provedoras de vida e do alimento. Quando nós ali bebês percebendo e tentando entender aquele olhar de quem nos nutre, ainda achando que somos parte daquela mãe que alimenta, que oferece afeto, que resolve os incômodos e que controla a rotina. Começamos a crescer e sofremos com a percepção de que não somos parte daquele outro corpo que nos alimenta e cuida. Mas o primeiro amor foi ali impresso, naquela vivência pela sobrevivência.
Voltando a Denise Fraga, ela fez outro comentário que tem a ver com essa nossa troca de ideias. Ela contou que a figura de seu pai não era positiva, ou não era presente. Ela contou que quando seu pai chegava, ele deixava o molho da chave logo na entrada, e quando ela ouvia aquele barulho das chaves, já sabia que não seria bom.
Ela associou o barulho das chaves a um momento negativo - a chegada de seu pai. Para ela, o conceito de pai não é o mesmo que o seu, assim como você não associa o barulho de chaves a algo que pode ser ruim. Mas para ela é um teste, se alguém chegar na casa dela e o barulho das chaves remeter a época quando era seu pai quem chegava, é hora de partir e mudar os rumos.
E assim funciona nossas percepções. O conceito acadêmico ou socialmente aceito sobre o que é pai, todos temos igual. Mas aquela primeira imagem ou sensação que bate quando se ouve a palavra pai é diferente para todos. Assim como para o que é a felicidade.
Isso vale para todas as palavras. Todos as coisas que atribuímos um conceito estão sujeitas à lente que aprendemos ou escolhemos usar.
A Academia, o GPT, amigos, professores, muitos podem querer desevendar ou descrever o que é a felicidade. Mas, você é a pintora do seu quadro da vida. Como sua admiradora, eu vejo um quadro lindo seu sobre a felicidade. Você é uma das mulheres mais fantásticas que já conheci, com ups-and-downs ou não (como diria Caetano), eu vejo muita felicidade em você.
Beijos no seu coração
Mari Wechsler
Uau, achei que tivesse respondido aqui e não há resposta. Mas como disse, eu fiquei muito comovida com sua carta e vou levar dias pensando em suas palavras. Quanta coisa boa aí no meio, inclusive sobre mim. É sempre bom se ver nos olhos dos outros e no seu foi realmente especial. Obrigada pelo carinho. <3